Numa dessas noites, tinha eu pouco mais de treze, minha mãe tricotava uns carpins com a televisão ligada na 2. Teresa Guilherme num eterno feminino de dentuça aguçada, a apresentar debates onde nada existe que valha a pena ser dito. O triturar constante da conversa mole, seguia o lento desfiar da lã, para cá e para lá. Eu, revia pela milésima vez a colecção de calendários: David Hasseloff, Samantha Fox, Maddona, New Kids….
Na sala, à esquerda da mamã, estava a mana, toda esticada no sofá verde que era da avó, com os dentes da Teresa Guilherme reflectidos nos olhos arregalados de tanto ver televisão. Vindo do nada oiço um estrondo triplicado por três pancadas na porta.
“Quem è?” gritou sobressaltada minha mãe abandonando as agulhas e a lã sobre a mesinha para se dirigir à entrada. ”Couceira, abra a porta!” Mamã afectou surpresa, “Ah, é você Olímpia. A esta hora? Como está a menina Eunice? Morreu alguém? Entre!” Minha mãe sempre foi assim. Quando não sabe de que se trata, pensa logo em morte. Dona Olímpia entrou mais grave que nunca, trazia o olhar oblíquo, daqueles que parece que cortam quando pousados em nós. “O que me traz aqui é sério Couceira!”, mamã levou a mão ao peito,”Diga lá mulher por deus” Olímpia foi junto à janela, cogitar para a escuridão da rua:”Sabe o que é que se diz por aí? Não se fala de outra coisa…” “Sei, está a falar da Otilde que chegou da América?” atalhou minha mãe. “Não, estou a falar de outras modas, dizem que as nossas filhas andam aos beijos, mas que pouca vergonha é esta?” Olímpia deixara-se de rodeios. “E o que é que isso tem mulher, são crianças… “Não são beijos de criança, são beijos de língua e muito…e o mais longo, pelo que me disseram, durou minuto e meio”a mulher continuou “ Couceira, você tem uma filha em casa que é urgente tratar e por causa disso, também eu agora carrego a calamidade sob o meu próprio tecto”. Minha mãe empalideceu, levei-a pela mão até à cadeira, toda ela tremia. Olímpia bateu com a porta mas não sem antes decretar a devida distância a manter entre as nossas famílias. Corri à cozinha a buscar um copo de água para a mamã onde encontrei minha irmã, morta, inerte sobre uma poça de sangue vivo com os pulsos abertos.
Mas o que me martirizava era a ideia de nunca mais poder beijar Eunice.
Texto e ilustração: Aurélia Maia